quinta-feira, 30 de agosto de 2012

OUVIR OVÍDIO



Ovídio Martins vive em silêncio
dentro de cada verso seu.
Mora aí na ponta de praia desde o ventre
de sua mãe, soterrado por mil ou dez mil poemas
mestiços, tanto faz.
Quem lhe tirou o som do mar, até o de Pasárgada,
não sabia que um poeta ouve com o coração,
o imbecil carrasco.
Sentado na esplanada da pracinha
escrevia versos em guardanapos de papel
e Santiago amanhecia num poema
debruçado sobre as grades que separam o Atlântico
mar, prisão e liberdade, do mundo silencioso à sua volta.



terça-feira, 28 de agosto de 2012

OS CHEIROS DE CADA UM



Sou também de me prender a cheiros
que a alma embalam de saudade.
Não há como os cheiros de quando éramos
meninos e tudo tinha um cheiro verdadeiro,
que podíamos dizer: “porra, cheira mal!”.
Hoje é mais “está aqui um cheiro esquisito”…
Vem tudo a propósito do cheiro da tua catequista,
meu caro O’Neil. Dizes que de sensuais,
mesmo virginais cheiros excitantes.
Pois o mesmo não posso eu dizer:
a minha era só sovaco e mau hálito
e tudo o que me disse foi pró lixo.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

POESIA, ÀS VEZES

Quantas vezes te disse aqueles versos:
“Senhora partem tão tristes
meus olhos por vós meu bem”…
genuinamente de Camões – e tu acreditavas!
Eram de um tal Ruiz, nosso conterrâneo,
e tudo parecia igual à eterna Leanor descalça
por graça ou às tágides serviçais do canto primeiro…
Do canto jondo te falei e de Lorca
e de tristezas outras como o nosso fado.
O teu encanto era o porquinho amado
de Manuel Bandeira, a sua “primeira namorada”.
Enfim, nem deste conta do erro de geografia
na Lámpara Marina de Neruda, mas não te culpo:
ele dizia o que havia para dizer e isso era o essencial.
Disso tive a certeza quando, já com toda a liberdade,
Eras tu quem dizia Gomes Ferreira ardendo
e Ary queimando e queimando-se a cada verso.
Havia outro ainda, que sendo singular Pessoa
era uma multidão de dores e sentimentos.
Por que haveria eu de saber mais pormenores
sobre a cigarreira do “menino de sua mãe”?
Era breve, eu sei, mas por isso mesmo
o tempo não ajudava mesmo nada
a quem, no meio de tantos poetas,
desvendasse que a poesia era a nossa vida iletrada.

domingo, 26 de agosto de 2012

SÚBITA FLORESTA


Excerto de Súbita Floresta:

As árvores não choram quando nascem; guardam as lágrimas para mais tarde. Estendem os braços aos pássaros que nelas nidificam e aos homens dão frutos, mortalha e lições de filosofia.

(Este post servirá de separador para um conjunto de poemas sobre outros poetas, que João Corvo insiste em publicar, e me massacra diariamente para que assim proceda.)

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

POEMA DO LOBO IBÉRICO

O lobo uivou
............uivava
............uiva longe
num tempo passado
quem vestiu a pele do lobo nu
nca uivou:
late morde mata mente fala

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

PASSEIO HIGIÉNICO



Senhoras de condição
que de pronto trocais
os vossos sementais
por um cão (ou mais)
tomai muita atenção
e na hora do passeio
repensai vosso acto
o cocó do vosso asseio
que fica no meu sapato.
Evitaria a barrela
se à volta ao quarteirão
levásseis, em vez do cão,
vosso esposo à trela
(asseado como ele é)
pois em minha opinião
é melhor para o coração
e limpo para o meu pé.
É que já estou em perda
de faculdades mentais
paciência e outras mais
por limpar tanta merda.
Que tudo a vós compraza
mais nada vos peço eu:
a cada qual o que é seu
levai a merda para casa!

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

DEZ POEMAS NECESSÁRIOS

Álvaro CELESTINO ALVES de Castro é um amigo de longa data. Já aqui falei dele noutra ocasião, a propósito do seu PUXÃO DE ORELHAS. Mas a actividade cultural (e cívica!) do meu amigo não se cingiu apenas à poesia. Desde o teatro amador e de revista, como actor e como autor até ao associativismo, passando pela direcção de jograis e grupos de música tradicional, foi deixando o seu cunho, o seu dinamismo e o seu saber. Terminada a apresentação, pelo poeta António Salvado, do meu CORPO DE POEMA, em 1983, na Assembleia de Castelo Branco, teve lugar um beberete (e um “comerete” devido ao adiantado da hora…), o Castro, assim o trato, veio para junto de mim que, por via da praxe dos autógrafos, tardava a integrar-me no convívio – com umas boas dezenas de amigos, para o que contribuiu, com notícia “sugestiva”, o Joaquim Duarte, actual director d’ O Ribatejo e então jornalista do Jornal do Fundão - . Ele, o Castro, desdobrava-se em elogios (que aceito sempre com coração mas por feitio minimizo). Entre mil respostas que lhe podia ter dado, disse-lhe qualquer coisa como “mais dez poemas e a coisa vai lá…” Foi o bastante para o meu amigo, passados poucos dias, me oferecer o poema que aqui vos trago. Um abraço para ti, Castro.

domingo, 19 de agosto de 2012

MEMÓRIA

António Augusto Teixeira, meu pai (6.1.1924 – 19.08.1970)


Sombras ou o que resta delas:
esperas, memórias e mais nada;
o pó das estantes, a luz das velas
e uma fotografia emoldurada.

Espera é um pedaço de vida,
se a virtude em vão não for;
paciência, esperança e medida
entre a semente e a flor.



sexta-feira, 17 de agosto de 2012

EXERCÍCIO DE MEMÓRIA




Recordo as árvores, as flores e os frutos;
raramente a última primavera.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

UMA MÃO CHEIA DE TERRA


Uma mão cheia de terra
é todo o mundo e é nada;
uma semente que espera
na mão de terra encerrada.

Tem a ciência concisa
e até a luta de classes
e a proporção precisa
de ácidos, de sais e bases.

Tem até um sol aceso
num universo de estrelas.
Tem volume, forma e peso
sem contar com bagatelas.

E nada mais tem, tendo tudo,
que para tal não falta tema,
tendo a terra e, contudo,
não mais que este poema.

Eis a verdade que encerra
este universo, em suma,
uma mão cheia de terra
é tudo e coisa nenhuma.



segunda-feira, 13 de agosto de 2012

MANIFESTO CONTRA OS POETAS DE ASSIM


Andam por aí zangados com os anéis de Saturno
e demais cósmicos e virtuosos passos de dança;
coçam a virilha cega, e a outra, e depois a pança
e pairam, sazonais, em ordem própria e por turno.

Deuses, os que têm barba e figura de indigente,
com unhas multiusos, túnicas austeras e ensebadas
que, em paralelogramos de papel dão palmatoadas
a quem se porta mal e recusa ser diferente.

De todo o resto, não passam de figuras tristes:
metáforas anódinas, céus de chumbo, sonolência
e outras requentadas alquimias e faltas de paciência…
Abençoada sejas, poesia, que a tanto resistes!

sábado, 11 de agosto de 2012

EM PALPOS DE ARANHA


Passam-se coisas estranhas
ou, pelo menos, esquisitas:
na terra dos parasitas
anda tudo às aranhas,
salvo as ditas.

Passando aos pormenores,
há os que por acaso mero
tecem teia a partir do zero:
aracnoexploradores,
salvo erro.

Usando de baba e peçonha,
são servidos de bandeja
mesmo que a gente não veja
por outros bichos sem vergonha,
salvo seja.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

REVERSO



Teu peito
provocante
aberto

e descoberto a fios
de madrugada
respira ainda o beijo
quente
o ventre
líquido e substancial
do teu corpo em verso
violento



terça-feira, 7 de agosto de 2012

INVERSO


Sempre à mesma hora
enquanto o gebo hindu de prata
faz o raio xis do nobel mais recente

dispo-te a roupa interior
ao inverso
da cronologia estabelecida

guardo a tua imagem nua
perpetuamente fria
e estendo as minhas flores
em grassada lenta

sempre à mesma hora


cobertos pelas rugas
e os orgasmos que inventamos

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

CONTROVERSO


Tem aguarelas mortas
a nicotina
que nos suspende
amor
talha a ilusão do verso
num ritmo cardíaco
controverso

a língua do teu corpo fica ainda
mais ardente
mais entregue

mais fundo o tempo que desejo
num verso exausto imaginado
interdito
imperfeito

sábado, 4 de agosto de 2012

VERSO


Devagar
tão breve como lábios frescos
versejando
a lentidão da sesta
e o prazer do número impar
a cada página

cinzelar-te
a sombra a sol maior
neste querer-te lenta
sensual
voluntária e leve
em fatias de verso adocicado

deixar
escorrer-te o tempo
pelas tranças indefesas
ou pelas súbitas entrelinhas
transpiradas

derramar
então a cinza
a lava das veias
dilatadas

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

ESTAÇÃO ALTA


De camas se fala, não de enxergas, de alcovas,
do lençol que se esgueira a noite toda.
De camas se fala como leitos,
salas de espera nocturna.
De camas e ex-camas de turismo se fala.


Provado está que um rol de camas
acama um ror de euros.
Bastará para tanto uma frase convidativa
como: venham deitar-se nas nossas camas
ou apenas
passe uma noite connosco,
damos de brinde um sol
para a literatura estrangeira de viagens.


O Algarve tem camas, as coloridas costas têm camas,
mais as serras e as termas, nos seus termos,
para deitar – entre comas – as visitas mais exigentes,
que um dia das nossas camas falarão ao mundo


em seu mal soletrado castelhano

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

NA MINHA MODESTA OPINIÃO


Para quê ateimar,
se digo sim e você não.
Uma coisa é opinar
outra é ter razão.

Uso do contraditório,
admito.
Sempre dá mais falatório
e, se fizer falta, repito.

Em vez de bomba, botija;
em vez de bronco, bronquite.
Mas, `spere aí, não se aflija,
é apenas um palpite.

Isto de opinar tem
muito que se lhe diga:
o doador é quem
com a doação fica.